Quais os desafios da impressão 3D aplicada à Odontologia no Brasil?
Mayra Torres Vasques conheceu a impressão 3D quase por acaso, quando teve a oportunidade de estudar na Universidade de Kentucky, nos Estados Unidos. De volta, ela desenvolveu na Faculdade de Odontologia da USP um projeto “clinical trial”, de experimentos e observações clínicas envolvendo tecnologias 3D. Com dois artigos publicados, o mais recente agora em outubro, intitulado “Accuracy and Internal Fit of 3D printed Occlusal Splint, according to the printing position”, Mayra é atualmente doutoranda pela Faculdade de Odontologia da USP (FOUSP), e Community Manager da 3DHeals Brasil.
Desde junho deste ano, ela organiza mensalmente o “Meetup 3D Tech” na FOUSP. O grupo tem como intuito “promover o desenvolvimento e a adoção da tecnologia 3D no Brasil, discutir melhores formas de uso, novos projetos e networking”, nas palavras dela. Nesta entrevista, exclusiva para o 3DPrinting, Mayra Torres Vasques lança luz aos desafios de inovação que enfrentamos no Brasil quando o assunto é tecnologia “disruptiva”. Na verdade, a impressão 3D não é tão nova para os países mais desenvolvidos, como ainda é para o Brasil. Quando acertaremos o passo para nos tornarmos competitivos nesse mercado? Leia a entrevista:
3DPrinting: Você trabalha com tecnologia 3D aplicada à Odontologia há 4 anos. Como começou seu engajamento na área? Você já tinha planos para seguir carreira trabalhando com impressão 3D na Odonto?
Mayra Torres Vasques: Meu trabalho com impressão 3D começou por acaso. Estava procurando uma solução para um problema clínico, e soube que através da tecnologia CAD-CAM seria possível produzir digitalmente dispositivos intraorais precisos e ajustados independentemente das habilidades e experiência do profissional, de forma que o ajuste já estivesse pronto antes do atendimento ao paciente.
Resolvi iniciar uma pesquisa de doutorado para avaliar qual seria a resposta clínica desses dispositivos, o produto final precisaria ser viável economicamente e verifiquei que o melhor custo/benefício seria através da impressão 3D.
Imaginando que eu poderia simplesmente encomendar esses aparelhos intraorais impressos iniciei o projeto, porém surpreendentemente, a oferta desse serviço para saúde, com materiais biocompatíveis, era praticamente inexistente no Brasil. As opções disponíveis eram de alto custo, não haviam softwares com uso liberado pela Anvisa e os materiais biocompatíveis eram uma novidade no mundo todo. Nas agências brasileiras de fomento à pesquisa o projeto foi rejeitado por considerarem que não havia necessidade de inovação na área, enquanto no mundo todo ocorria uma corrida por implementar a tecnologia digital na Odontologia.
Há 4 anos atrás eu fui chamada de louca muitas vezes (risos), poucas pessoas viam o potencial dessa tecnologia na saúde mas eu acreditava muito no projeto e já encantada pela tecnologia de impressão 3D resolvi assumir o risco, entrar de vez na área e desenvolvê-la no Brasil, buscando conhecimento fora do país. Nesses 4 anos estudei a fundo e me especializei em todo o processo de impressão 3D, tive sucesso na pesquisa assim como em outros trabalhos que se iniciaram a partir disso. Ainda hoje escuto que essa é a tecnologia do futuro, poucos percebem que já estamos ultrapassados por aqui.
Ainda hoje escuto que essa é a tecnologia do futuro, poucos percebem que já estamos ultrapassados por aqui.
3DPrinting: Na sua visão, em qual estágio de desenvolvimento estamos, aqui no Brasil, em comparação a países mais desenvolvidos, como os Estados Unidos, onde inclusive você se familiarizou com essas tecnologias? Estamos muito atrasados? Porque isso ainda ocorre?
Mayra Torres Vasques: O Brasil é ainda hoje um simples consumidor da tecnologia proposta e desenvolvida mundialmente. Infelizmente, devido à burocracia governamental, problemas econômicos e culturais, estamos muito atrasados em relação a países mais desenvolvidos. Tudo que está sendo desenvolvido aqui acontece graças à dedicação de alguns profissionais pioneiros, como eu. Todo dia é um “7×1” no Brasil para quem quer empreender, inovar e desenvolver, precisa de muita persistência, resiliência, foco e investimento.
O processo de importação de tecnologia na saúde é extremamente lento e caro, as tecnologias disponíveis estão atrasadas em relação ao resto do mundo desenvolvido. Um exemplo são as resinas biocompatíveis, quase não há materiais desse tipo no Brasil pois o processo de liberação da ANVISA pode durar até 2 anos. Muitas empresas não têm interesse em trazer esses produtos para o Brasil pelo custo e dificuldades encontradas.
Pelo lado positivo, essas dificuldades nos fazem desenvolver a criatividade para novas soluções e, na Odontologia, a capacidade e a inovação do profissional brasileiro são reconhecidas mundialmente.
3DPrinting: Tendo em vista um contexto onde a Manufatura Aditiva (MA) é fundamental para a inovação na Indústria 4.0, como você acha que a iniciativa privada – por meio de aceleradoras, investidores e startups, por exemplo – poderiam contribuir para disseminar o uso das tecnologias 3D na área da saúde no Brasil? O que falta para isso acontecer “de fato”?
Mayra Torres Vasques: Na área da saúde o desenvolvimento da manufatura 3D, no Brasil, está apoiada muito mais nas empresas representantes comerciais do que nos formadores de opinião (professores e usuários). Por um lado temos que valorizar o trabalho dessas empresas que enxergaram a oportunidade, apostaram na inovação e estão diminuindo a distância do Brasil em relação aos países mais desenvolvidos. Por outro lado, com todo o investimento que fazem, o foco das empresas é a venda direta do produto, então acredito que falta a visão do desenvolvimento do mercado local.
Há diversos modelos de uso da tecnologia que não estão sendo empregados ainda, hoje o modelo de desenvolvimento colaborativo e compartilhado é o que vem tendo mais sucesso no mundo. Eu mesma desenvolvo diversos trabalhos através do contato com colaboradores em redes sociais. Certamente há espaço para novas soluções a partir de startups que precisarão de suporte de investimentos e programas de aceleração. Até o momento não conheci nada voltado para a área 3D em saúde, mas acredito que os investidores em pouco tempo irão perceber esse potencial.
Da minha parte, o que venho fazendo é trabalhar na divulgação das ideias e na formação do ecossistema, promovendo novas pesquisas, consultorias na área e encontros mensais onde as pessoas se conectam a fim de construir novas parcerias.
3DPrinting: Qual seu papel como Community Manager na 3DHeals Brasil? Tem algo a ver com o Meetup que você tem realizado periodicamente na USP? Gostaria que detalhasse mais sobre ambos os projetos, e o que representam para a sua carreira neste momento.
Mayra Torres Vasques: A 3DHeals é uma comunidade internacional que tem como objetivo promover mundialmente a adoção da impressão 3D na área da saúde. Todos podem se cadastrar no site, se atualizar sobre conteúdos e eventos na área e se conectar com membros do mundo todo.
Participei esse ano como Speaker no congresso da 3DHeals, representando o Brasil, e pude ter contato direto com diversos projetos que vêm sendo desenvolvidos no mundo a partir da Manufatura Aditiva. Existem projetos com foco mais comerciais e projetos com foco mais assistenciais, mas todos inovando e trazendo novas soluções para o mercado.
A 3DHeals vem organizando eventos de aceleração de startups na área de tecnologia 3D em saúde, competições e pitchies,conectando empreendedores e investidores, e meu sonho é ver isso acontecendo por aqui. Sinto falta desse movimento aqui no Brasil e a dificuldade de conectar nosso ecossistema com o mundo, que é o meu papel como Community Manager; aqui as pessoas adquirem uma tecnologia inovadora mas o uso que vem sendo feito não é tão inovador.
Acredito que uma das melhores formas de mudar isso é aumentando exponencialmente o contato das pessoas com a tecnologia através da troca de ideias e experiências entre os usuários e entusiastas. Assim surgiu o espaço na USP para o desenvolvimento desses Meetups que completam agora 6 meses de existência. O projeto Odonto 3D Meetup é focado em desenvolvimento do ecossistema, qualquer pessoa interessada pode participar, o grupo está crescendo rapidamente e já conta com a participação de dentistas de São Paulo e do Rio de Janeiro, engenheiros, profissionais de TI e até biólogos.
Os participantes debatem os temas e trazem desafios que estão enfrentando para que possam ser solucionados pelo grupo. Contamos com a colaboração de professores da USP de diversas unidades como Odontologia, Escola Politécnica, Química, Arquitetura e IME.
Em breve vamos abrir acesso online para as reuniões e no próximo ano penso em realizar algumas das reuniões em outros locais de SP ou do Brasil. Tudo isso se encaixa com o meu foco atual na carreira, estou no processo de lançamento de uma Startup que foca exatamente o modelo co-participativo de uso da tecnologia 3D na Odontologia no primeiro estágio, atuando na parte de consultoria para novos projetos, formação e uso compartilhado de equipamentos e num próximo estágio a ideia é atuar como um hub de desenvolvimento colaborativo.
3DPrinting: Muita gente acredita, antes mesmo de começar a estudar as tecnologias 3D e suas aplicações em diferentes áreas do conhecimento, que a máquina – a impressora, no caso – é o principal ponto de atenção ao longo de todo o processo. A prática e sobretudo a experiência dos mais veteranos na área, no entanto, tem nos mostrado que pouca importância é dada ao processo de modelagem 3D, quando, na verdade, esta deveria ser a maior preocupação, uma vez que a qualidade da impressão depende diretamente da qualidade do arquivo 3D disponível. Qual sua visão sobre isso? E o que você acha que poderia ser feito para melhorar?
Mayra Torres Vasques: Concordo totalmente com os veteranos na área, a impressora 3D é só uma forma de materializar um projeto. Sem o projeto (que envolve aquisição de imagens e modelagem) não há o que se aproveitar da impressão.
A resposta acaba sendo repetitiva mas volta exatamente ao ponto anterior, quem vem ditando o comportamento do mercado são as empresas que vendem os equipamentos e portanto o foco continua sendo muito mais o equipamento do que o processo como um todo, isso é compreensível mas não é o ideal. O que vejo que está ocorrendo é que o usuário começa a perceber essa deficiência a partir da aquisição dos equipamentos e então tem que dar alguns passos atrás e buscar uma formação. Esse processo é ruim porque atrasa a adoção da tecnologia, gera frustração e investimentos errados.
Eu sou apaixonada pela minha impressora 3D mas hoje, no meu modelo de trabalho, não sei se precisaria ter um equipamento só pra mim, por exemplo. Claro que por desenvolver minha carreira nessa área ela é um ótimo investimento, mas para o profissional que usa somente o produto final, pode não ser
Em contrapartida, os conceitos de modelagem e como trabalhar com a imagem, são imprescindíveis e fazem a diferença entre você inovar e obter a melhor qualidade de um projeto ou não. No último Meetup, em setembro, esse foi um dos temas abordados, como os usuários estão sendo levados a focar nos equipamentos (no caso da Odontologia, o scanner intraoral e as impressoras 3D) e como a falta de conhecimento no processo de modelagem tem gerado erros a partir de uma aquisição de imagem sem os cuidados necessários.
Infelizmente a realidade não é o “plug and play” que vendem, tem que considerar a curva de aprendizagem da nova tecnologia, tem que estudar seu modelo de negócio, seus objetivos para a empresa/consultório/hospital e para a vida. Não tenho com isso a intenção de desmotivar o uso, mas sim explicar que a tecnologia 3D veio para ficar, é para TODOS, mas não da mesma forma. Precisamos entender que no 3D tudo é personalizável até mesmo sua forma de adoção. O que pode ser feito para melhorar é compartilhar ao máximo todos os tipos de informações na área, como é feito no site 3DPrinting e desenvolver a integração dos usuários, formadores de opinião, centros de pesquisa e empresas. Se não houver união e comunicação esse processo vai ser mais longo e ineficiente.