Bioimpressão e Biotecnologia: chegou a vez das startups na área da saúde

Em novembro de 2017, a rede inglesa de cosméticos Lush laureou o trabalho da brasileira Carolina Motter Catarino com o prêmio “Young Research Americas 2017”, ou “Jovem Pesquisador”, na tradução literal em português. O projeto em Bioimpressão desenvolvido por essa jovem cientista, de apenas 28 anos, já pode ser considerado um marco decisivo na condução de pesquisas que podem levar à criação de tecidos e órgãos plenamente vascularizados no futuro.

Atualmente, Carolina desenvolve sua linha de pesquisa no Instituto Politécnico Rensselaer, em Nova York, para onde se mudou em 2015 como bolsista pelo programa Ciência Sem Fronteiras do governo federal brasileiro. Nesta entrevista, exclusiva para o 3DPrinting, a cientista fala sobre seu trabalho pioneiro, seus sonhos e principalmente sua visão sobre os rumos possíveis para a Bioimpressão e Biotecnologia no Brasil:

3DPrinting: Você trabalha com Bioimpressão, uma área do conhecimento muito promissora, mas ainda muito incipiente, especialmente no Brasil. Como você avalia a importância do seu trabalho para o progresso da ciência? Vivemos um momento de disruptura, onde a ‘ficção científica’ parece tomar conta da realidade?

Carolina Catarino: Acredito que o trabalho que estamos desenvolvendo aqui vai possibilitar suprir gaps que metodologias tradicionais não conseguiriam na engenharia de tecidos. A grande vantagem desta tecnologia de impressão 3D é que conseguimos posicionar materiais biológicos, tais como proteínas e células, de forma muito precisa e reprodutível. Com isso conseguimos recriar estruturas e tecidos tridimensionais complexos. No caso dos modelos de pele, produzidos há anos com sucesso por métodos tradicionais, a bioimpressão nos possibilitará recriar estruturas mais complexas dentro da pele, como por exemplo, o folículo capilar, gerando assim um modelo que seja fisiologicamente mais relevante e similar à pele humana.

“O advento da tecnologia de impressão 3D, e em especial da bioimpressão, muitas vezes nos faz realmente acreditar que a ficção científica esteja se tornando realidade. A ideia de que um dia poderemos imprimir órgão inteiros em laboratório seria considerado uma obra ficcional até alguns anos atrás. Hoje começamos a ver essa realidade, ainda que distante, se aproximando”



3DPrinting: Como você avalia a questão da Ética envolvida em um trabalho que pressupõe, por exemplo, a manipulação de células para fabricação de órgãos e tecidos? Como funciona isso nos Estados Unidos, onde você trabalha atualmente? 

Carolina Catarino: De forma semelhante aos lugares onde trabalhei como pesquisadora no Brasil, aqui na minha Universidade — e creio que nos Estados Unidos de modo geral — todos os projetos que envolvem manipulação de tecidos e células de origem humana ou animal são regidos por comissões de ética. Essas comissões avaliam não apenas a pertinência e inovação do projeto, mas também garantem que esses preciosos recursos sejam manipulados da forma mais adequada e ética possível. Por exemplo, no meu trabalho nós fazemos o isolamento de células da pele a partir de amostras de pele humana. Essas amostras são provenientes de cirurgias plásticas e são doadas com a autorização do paciente. Além disso, para poder trabalhar com esses materiais, é preciso fazer uma série de treinamentos sobre segurança e riscos na manipulação de células e tecidos.

3DPrinting: O que representa para a sua carreira ter ganho o “Young Research Americas 2017”, promovido pela marca de cosméticos Lush? Acha que essa premiação pode ajudar de alguma forma a atrair mais investimentos para pesquisa em Biotecnologia e Bioimpressão no Brasil?

Young Researcher (Americas) – Carolina Catarino from Lush Prize on Vimeo.

Carolina Catarino of the Rensselaer Polytechnic Institute in the USA won a Young Researcher (Americas) prize for her project ‘Animal-free approaches for engineering physiologically relevant humanized skin models using 3D Bioprinting technology’

Carolina Catarino: Foi uma honra muito grande ter recebido o prêmio de Jovem Pesquisadora da Lush. Essa premiação representa não apenas o reconhecimento do meu esforço e dedicação, mas principalmente o reconhecimento da motivação e do potencial do meu projeto. É muito motivador receber um incentivo como esse e tenho certeza que impulsionou ainda mais a minha vontade de continuar a trabalhar no desenvolvimento de modelos de pele e no uso de métodos alternativos na indústria.

Além disso, a repercussão da premiação criou oportunidades para chamar atenção da sociedade brasileira não apenas sobre esse conceito de métodos alternativos aos animais para testes de laboratório, mas principalmente sobre a importância de investirmos em pesquisa. Acredito que muitas vezes a pesquisa desenvolvida dentro dos laboratórios e universidades brasileiras fica muito distante do entendimento e da vida das pessoas que estão fora. Assim, ter um projeto com o qual as pessoas conseguem se identificar por conta do potencial de, por exemplo, ser um método alternativo aos animais para testes de cosméticos, criou a chance de chamarmos a atenção sobre a importância de investir em pesquisa. Eu não estaria aqui nos Estados Unidos desenvolvendo esse projeto sem o apoio do programa Ciências Sem Fronteiras.

 

Carolina com seu prêmio em mãos durante o Lush Prize Awards Ceremony 2017

“Eu espero que essa premiação e esse momento ajudem a trazer mais investimentos sim ou pelo menos ajude a chamar a atenção da sociedade sobre a importância de investir em educação, ciência e tecnologia”

3DPrinting: Além de colocar um fim nos testes em animais, quais seriam os outros usos possíveis para a pele humana sintetizada em laboratório? Funcionaria para a regeneração de tecido no caso de uma queimadura ou câncer de pele, por exemplo?

Carolina Catarino: O projeto de impressão de pele humana do nosso grupo visa duas grandes áreas de interesse. A primeira, seria justamente o desenvolvimento de modelos para serem usados como plataformas para avaliação toxicológica e de eficácia de produtos aplicados topicamente. Uma segunda área de interesse é o desenvolvimento de enxertos de pele que possam ser usados no tratamento de queimaduras e feridas. Neste segundo aspecto, nosso grupo vem trabalhando na vascularização de pele a fim de melhorar a integração do enxerto com o tecido do paciente.

3DPrinting: Quais outros projetos envolvendo Bioimpressão você está envolvida no momento? Pode nos descrever um pouco a sua rotina de trabalho e experiência na área? O que te fascina mais em todo esse contexto?

Carolina Catarino: O foco do nosso grupo tem sido a bioimpressão dos modelos de pele e de vasculatura. Esses passos iniciais nos possibilita expandir a gama de tecidos e órgão pesquisados pelo grupo no futuro. Na universidade, há outros grupos com interesse em utilizar essa tecnologia para a geração de organóides que possibilitem o estudo de doenças como o câncer. O meu projeto se concentra especificamente no desenvolvimento de novas biotintas para geração de modelos de pele que sejam fisiologicamente mais relevantes e a inclusão da estrutura do folículo capilar nesses modelos.

“O meu trabalho como doutoranda engloba desde o gerenciamento de recursos e compras de suprimentos, à gestão dos meus projetos e a execução da pesquisa em si”

Para a geração dos modelos de pele, eu começo com o isolamento e expansão das células da pele, que então são adicionadas às biotintas para serem impressas dando origem a estrutura 3D da pele. Após o tempo de incubação necessário para a maturação desses tecidos, fazemos então a análise histológica para verificar a estrutura da pele.

“O que mais me fascina nesta tecnologia toda é que somos capazes de recriar dentro de um laboratório um tecido que se assemelha à pele humana. É incrível pensar que as células, mesmo fora de seu microambiente natural, tendo apenas alguns fatores de guia, são capazes de se organizarem e seguirem seu processo natural de crescimento e diferenciação. E agora, com o uso da bioimpressão 3D, vamos ser capazes de ajudar essas células a criarem estruturas ainda mais complexas. É uma área incrível e apaixonante!”

3DPrinting: Sabemos que o Brasil vem enfrentando cortes sistemáticos em projetos importantes de fomento à Educação, Ciência e Tecnologia. Diante de um cenário atual pouco otimista no país, como você acha que podemos evoluir no que diz respeito à Biotecnologia e Bioimpressão? A iniciativa privada, poderia contribuir apostando e investindo em startups no setor, por exemplo? Me parece que esse modelo já é até bem difundido em países como os Estados Unidos, Alemanha e Holanda.

Carolina Catarino: Acho que precisamos criar novos modelos de investimento além do financiamento estatal e federal. Aqui nos Estados Unidos, é muito comum colaborações entre empresas e Universidades. Além de proverem recursos para a pesquisa, essas colaborações aproximam o mercado daquilo que é desenvolvido dentro dos laboratórios. Além disso, existem diversas fundações privadas e outras instituições que financiam projetos de pesquisa. Eu acredito que uma excelente alternativa para o Brasil neste momento de baixos investimentos na Educação, Ciência e Tecnologia seria facilitar essa interação da iniciativa privada com o mundo acadêmico. Todos têm a ganhar com esse modelo.  

3DPrinting: Qual(s) conselho(s) você daria para um estudante que deseja seguir carreira na área de Bioimpressão/Biotecnologia? Que tipos de desafios e obstáculos essa nova profissão pode reservar aos jovens cientistas?

Carolina Catarino: Quando eu entrei na faculdade, a Biotecnologia era umas das apostas para revolucionar o mundo. Passados 10 anos, essa continua sendo uma verdade para mim. Essa área de pesquisa está em constante evolução, sempre abrindo novos campos e criando oportunidades. Acredito que seja uma área para quem gosta de desafios, inovação e mudança. Acho que o primeiro desafio, inerente não apenas à biotecnologia, mas também a outras profissões, é encontrar um assunto com o qual se tenha afinidade e interesse suficiente para se manter motivado. Além disso, por ser uma área de pesquisa em constante mudança, é preciso se adaptar rapidamente às mudanças e demandas. A Bioimpressão, por exemplo, é uma área que tem evoluído exponencialmente nos últimos anos e tem criado oportunidades antes inimagináveis ou que realmente se parecem com ficção científica. Acredito que para ter sucesso nessa área é preciso estudar muito, ter persistência, e, devido ao caráter multidisciplinar de muitos projetos, é importante ler sobre diversos assuntos. É uma área em que somos constantemente desafiados, mas que nos oferece também um mundo de possibilidades para criar e fazer acontecer.

3DPrinting: Quando voltar ao Brasil, no ano que vem, como você pensa em seguir com o projeto desenvolvido lá fora? Já tem planos para os próximos passos na sua carreira nesse sentido?

Carolina Catarino: Eu ainda estou analisando quais serão os meus próximos passos. Acredito que essa decisão dependerá muito de como meu projeto de doutorado será finalizado e das oportunidades que surgirem neste próximo ano. Eu gostaria muito de continuar na área de pesquisa em especial no desenvolvimento e aplicação de modelos de pele humana reconstruída. Mas independente disso, eu estou aberta para compartilhar o que aprendi sobre bioimpressão 3D.

3DPrinting: Como você avalia a participação das mulheres na ciência atualmente? Estamos finalmente conquistando nosso lugar de fato, ou ainda há muito o que ser feito para que isso aconteça? Você sente que há diferenças de tratamento, por exemplo, na sua atuação aqui no Brasil e fora do país? Como você se sente em relação a isso? E o que você acha que precisa mudar?
Carolina Catarino: Eu acredito que as mulheres estão conquistando um espaço muito importante na pesquisa. Recentemente eu li que cerca de 50% dos artigos científicos publicados no país são de autoria de mulheres. No entanto, de acordo com o Cnpq, as mulheres ainda representam apenas 24% dos pesquisadores de nível sênior que recebem bolsa de pesquisa no Brasil. Então ainda há um gap.

“O Brasil precisa poder contar com todos os talentos independente de gênero, porém, como historicamente é notória a desigualdade entre homens e mulheres na participação da pesquisa no Brasil, este é um bom momento para promovermos uma maior inclusão dos talentos femininos neste time”

Eu nunca sofri nenhum tipo de discriminação no ambiente de trabalho tanto no Brasil quanto aqui nos Estados Unidos. Mas, assim como eu, acredito que a maioria conhece a história de colegas que tenham sofrido algum tipo de discriminação por serem mulheres. Essa discriminação começa com aquela piadinha na faculdade de que o professor só aumentou a nota porque era menina, quando você escuta que só recebeu um prêmio porque é bonita, ou quando temos que fazer mais que homens na mesma posição para mostrarmos que somos realmente dignas de nossas conquistas, e assim por diante. Acredito que a mudança começa por nós mesmas. Precisamos acreditar mais no nosso potencial e poder. Nós somos sim extremamente capazes e não podemos deixar que ninguém nos deixe pensar o contrário.  Acredito que o machismo na ciência esteja diminuindo, e espero que em pouco tempo a questão de gênero não seja vinculada de forma alguma à capacidade e qualidade de um pesquisador.

 

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